terça-feira, 28 de dezembro de 2010

TEMA 36 - SÓSIA

O SÓSIA DO DIABO
Mariazinha Cremasco


Era uma menina comum. Brincava, estudava, brigava. Foi mais ou menos aos oito anos de idade que percebeu que era diferente das outras: ela acreditava que "via" coisas.

Tudo começou com um sonho. Sonhou que estava em frente à penteadeira da mãe, olhando-se no espelho. Porém o que via não era sua imagem refletida, e sim um homem moreno, feio, com rugas na testa e traços marcantes. O homem olhava fixamente para ela com seus olhos de fogo e mastigava. Seu maxilar quadrado subia e descia lentamente, mastigando bolinhos que pegava em um prato. Colocava um na boca, mastigava cuidadosamente e engolia. E então, outro bolinho aparecia no prato vazio. E ele comia outra vez, sempre olhando para a menina.

Ela acordou apavorada. Chamou a avó, que dormia no mesmo quarto. Tentou contar o pesadelo, mas a velha lhe pediu que voltasse a dormir: era só um sonho. Mas a menina não conseguia esquecer o homem do espelho. Parecia tão real, não poderia ser apenas sonho. Acabou adormecendo de pura exaustão.

Alguns dias depois, numa manhã de domingo, a menina, bem arrumada, com vestidinho rodado, sapatinhos brancos e fita no cabelo, saiu com a avó. Coincidentemente, essa era a mesma roupa que usava no sonho do espelho, mas ela nem percebeu isso.

Apanharam o ônibus e a menina sentou-se toda feliz na janelinha, ao lado da avó. Ela adorava os domingos. Dizia que esse dia da semana tinha um cheiro diferente, muito agradável. Os domingos sempre traziam um grande bem-estar. Assim perdida em seus pensamentos, olhava para a rua, analisando tudo o que via: casa bonita, casa feia, lado da rua par ou ímpar, pessoas com roupas coloridas, árvores e flores. Prestava atenção nas diferentes tonalidades de verde das folhas.
Então o ônibus parou em um ponto que ficava bem na frente de um bar. A menina esticou os olhos e, lá dentro do bar, ela viu um homem. Não. Ela viu o homem. O mesmo homem do espelho. Como no sonho, ele olhava para ela fixamente, enquanto comia bolinhos que tirava de um prato. E mastigava pacientemente, depois engolia e pegava outro. O mesmo rosto, a mesma testa vincada, o mesmo olhar de fogo, a expressão dura e o maxilar quadrado.

A menina começou a tremer incontrolavelmente, o que assustou a avó, que queria saber o que estava acontecendo. O ônibus partiu e só então ela contou do homem que vira no bar. A avó, que não tinha visto ninguém, disse algo que a apavorou ainda mais: é o diabo! É o diabo! Só o diabo tem um prato que nunca fica vazio, por mais que se coma.

Nunca mais a menina conseguiu dormir no escuro. Depois desse dia, começou a ver coisas estranhas e isso nunca mais parou. Depois de adulta, com freqüência olhava para uma criança ou jovem e conseguia vê-la velha. Ou então via um velho e adivinhava seu rosto quando criança. Outras vezes, ao conhecer alguém, tinha a sensação de enxergar aquela pessoa morta: pálida, deitada no caixão, coberta de flores, das quais imaginava até a cor.

Ela acabou se habituando às visões, mas nunca deixou de se assustar com elas. Em algumas situações, quando vê um homem qualquer muito nervoso, brigando por alguma coisa, sente o mesmo pânico da infância. Vê a boca crispada, a testa cheia de vincos, o maxilar comprimido e teme estar diante do sósia do diabo.

TEMA 34 - LABIRINTO

PEG E (NÃO) PAGUE
Mariazinha Cremasco


Afanásio era um homem lá dos seus cinqüenta e poucos anos. Casado com a mesma mulher há quase trinta anos, competente no trabalho, corretíssimo e muito, muito chato. Sua chatice não tinha razão de ser. Era chato e pronto. Intolerante, rabugento, implicante, sem paciência para nada. Tinha dificuldade em demonstrar sentimentos, o "seu" Afanásio. Às vezes parecia um tirano, outras vezes, um pobre coitado.

As pessoas do seu convívio tentavam enaltecer suas qualidades, que diga-se de passagem, não eram poucas. Homem honesto, fiel, incorruptível. Só que exagerava no direito de ser chato. Chegava a ser insuportável. Criticava tudo e todos, senhor absoluto da verdade - e que ninguém ousasse desafiá-lo. Tinha preconceitos absurdos contra advogados, judeus e japoneses. Não gostava de mineiros, pobres, pretos e homossexuais. Detestava gente do ABC e pessoas que estacionam de marcha à ré nos supermercados. Tinha pavor de quem fala ou escreve errado e de funcionários públicos. Achava que quem trabalha muito é burro e abominava psicólogos. Detestava médicos também, embora precisasse deles, como qualquer outra pessoa. Odiava velhos ("por que não morrem logo, ficam aí fazendo hora extra!") e crianças ("são todas mal educadas e estão sendo treinadas para ser prostitutas ou trombadinhas"). Um dia, assistindo à televisão rimos muito quando vimos uma menininha dançando a boquinha da garrafa. O comentário do Afanásio: "essa está colocando a xoxota a juros".

Pertencia à classe média alta. Tinha poupança, aplicações, dinheiro guardado. Nada lhe faltava. Homem previdente e econômico: econômico no sexo, econômico no amor, econômico nas finanças, econômico em tudo.

Um belo dia, decidiu parar de fumar. E engordou. E ficou incomodado. E teve medo. Não conseguia parar de comer doces. A única saída que encontrou foi comprar balinhas diet, para suprir sua necessidade de açúcar. Foi ao supermercado e se indignou com o preço dos produtos diet, caríssimos. Ficou indeciso por momentos e, quando se deu conta, já tinha pego uma latinha de balas, aberto a embalagem, enfiado uma na boca e guardado a caixinha metálica no bolso da camisa.

Mal sabia que à partir deste dia entraria num labirinto. Labirinto, sim: sem saída. O final do caminho. Passou a ir todos os dias a supermercados, vários, um após o outro. E furtava balinhas e chicletes "no sugar". Fez daquilo sua diversão. De balinhas e chicletes passou a pilhas e baterias. A coisa foi crescendo e, logo, já vinha para casa com aparelhos de barba, pregos, parafusos, escovas de dente, revolveres de mangueira de jardim. Ia ficando cada dia mais atrevido, cada vez mais sofisticado nos seus furtos. Até que passou a freqüentar a seção de produtos alimentícios. Aí ninguém mais o segurava. Roubava vidrinhos e vidrinhos de condimentos. Desde os mais simples, como canela em pó e pimenta do reino, até os mais sofisticados, como curry e endro. Um dia chegou ao ponto máximo da cara de pau. Levou para casa, escondidos nos bolsos, vidrinhos de alcaparras e de aliche importados.

"Seu" Afanásio, o incorrupto, o homem correto, que calculava centavos, o homem que não lesava ninguém e que não admitia ser lesado, estava absolutamente viciado em pequenas contravenções, para pavor de sua mulher, que me contou essa história com lágrimas nos olhos. Achei muito triste, embora tenha dado minhas gargalhadas lá no íntimo. Como vizinha desse homem tão chato, que gritava com meus filhos, que não admitia que meu carro ficasse um milímetro na "sua" calçada, que reclamava que as folhas da "minha" árvore sujavam a rua, que não devolvia bolas nem pipas que caíssem em seu quintal, me senti um pouquinho vingada. Afinal, em todo labirinto há um minotauro. Para Afanásio, o minotauro é o Zé da segurança, que um dia vai fazê-lo esvaziar os bolsos na mesa da salinha dos fundos.

TEMA 33 - COMIDA

O PÃO NOSSO DE CADA DIA

Mariazinha Cremasco & Valentina Alcàzar

Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Mas tinha fogão. Que é que tem para comer? Manhê, tô com fome. Não tem pão? Que comam brioches. Grude, gororoba, bóia, rango. Comer, comer. Comer gato por lebre. Comer mortadela e arrotar peru. Paiê, compra doce? Quero doce! Minha avó dizia: vocês não têm fome, vocês tem apetite. Só um pedacinho, por favor, pode ser da ponta. Você é um docinho. Ai, meu colesterol. Mas esse menino não fica quieto. Dá comida para ele que ele pára. Ou dá um pirulito, vai ver: enquanto está comendo, dá sossego. Vamos jantar fora hoje? Você tem fome de quê? Adoro pizza com guaraná. Sou tempo do guaraná de rolha. Senta, menino, come direito! Tenha modos à mesa. Que foi? Vomitou de novo? Você tem o olho maior do que a barriga. Ai, me pega um sonrisal, joga na água. Miojo, miojo, miojo, é o macarrão que satisfaz. Ufa! Arroz e feijão de novo? A gente não quer só comer, a gente quer comer e quer fazer amor. Você é tão linda, assim branquinha, estou me apaixonando, não é só sexo, mas juro que quero comer você todinha. Meu amor, nós dois combinamos mais do que ovos com bacon. Seus olhos são como duas azeitonas. Seus cabelos parecem espaguetes. Romeu e Julieta, que coisa mais careta. Mulher, joga água no feijão que hoje eu vou levar o time pra jantar em casa. Eca, essa comida tá sem tempero. Ai, meus sais, não aguento mais cozinhar!!! É, a rapadura é doce mas não é mole não. Olha o Mac Donald's alí. Pára. Pára. Entra no drive thru. Batatinha frita um dois três. Três hamburguers, por favor. Você quer catchup? Ai que fome. Que é que tem pra comer? Pão, laranja (todas as mães respondem isso um dia: pão, laranja). Arroz! Feijão! Batata e macarrão! Odeio fígado. Toma um eparema que melhora. Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto, eu tô voltando. Disque. Disque. Disque pizza. Disque comida chinesa. Vamos à churrascaria? É só $9,90. Por favor. A partir de hoje não se frita mais bife nessa cozinha que eu odeio limpar fogão, entendeu?! É melhor morrer gordo e feliz do que magro e triste, ele dizia, e agora está tão magro, será que ficou triste? Jurema, tira o almoço, só duas folhas de alface e um pedaço de nabo, que não posso engordar nem um grama. Vivo de regime, não lembro dia da minha vida em que tenha comido sem calcular as calorias. Compra um número um? Então só um big-mac? Então só uma batatinha? Pôxa, mãe. Compra só uma casquinha então. Porque eu, minha filha, não quero ser "magra", eu quero é ser seca, esquelética. Ufh, não sei como vocês conseguem comer tanto. Marmelada de banana, bananada de goiaba, goiabada de marmelo. Pamonhas, pamonhas, pamonhas. Pamonhas de Piracicaba. Morangos de Atibaia. Festa do figo de Valinhos. Festa da uva de Vinhedo. Festa de Nossa Senhora da Acheropita. Não se leva sanduíche em festa. Credo! Crepe. Creme. Crispis. Croquete. Crocante. Crush. O que é que tem de almoço? Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa. De novo essa "gosma"? Faz uma lasanha, vai. Frango de televisão? Nem pensar. De hoje em diante, elegerei para meus amigos apenas e tão somente garçons e maitres de churrascaria. Eles sim, me tratam bem. São gentis, educados. Onde se ganha o pão não se come a carne. Não, não e não! Então quero batata frita. Compra doce paiê, compra doce paiê, compra doce paiê!!! Sonham com bife à cavalo, batata frita e a sobremesa é goiabada cascão com muito queijo depois café, cigarro e um beijo. Ai, ai. Fechou meu pilórico. Amor não enche barriga, meu bem. Feijão, feijão, feijão, o preto que satisfaz. Deixa eu dar uma mordidinha? Uma vez comi salame na sexta-feira santa, que pecado! Não dou esmola não, que eles gastam tudo em cachaça. Bebida é água, comida é pasto. Meus filhos? Comem que nem uns bois. Vem cá, meu amorzinho, olha, o papai vai fazer aviãozinho vruuuuummmmmm, você tem que comer pra crescer e ficar forte. Gelatina? Não tem graça nenhuma. Quero bolacha recheada. Posso fazer um hamburguer, mãe? Não! Suja demais o fogão. Fica com cheiro na casa toda. E a mãe, fica com o copo. Mas sempre tem a cama pronta e rango no fogão. Eu janto pensando no almoço de amanhã. Carboidratos só antes das 14:00hs, massa engorda, chocolate dá espinhas e carne aumenta o colesterol. O verdadeiro baurú nasceu no ponto chic! Quero patê de língua de colibris indonésios. Amanhã de manhã, vou pedir o café pra nós dois. Hora de dormir, meu filho. Empanzinado, entubado, lotado, cheio, engazopado, entupido, estufado, até a tampa, até os olhos. Vamos rezar: o pão nosso de cada dia nos dai hoje e também nos dai amanhã e depois de amanhã e para todo o sempre, amém.

domingo, 5 de dezembro de 2010

TEMA 32 - Na Contra mão

NA CALADA DA NOITE
Mariazinha Cremasco

Duas horas da manhã. Não consigo dormir. Justo hoje que deitei cedo, pois estou tão cansada. Tenho tantas coisas para fazer amanhã. Desde a meia noite estou na cama. Vou levantar. Não. Não devo. Se levantar, desperto. Desperto de quê? Ainda não dormi, nem mesmo cochilei, despertar de quê? "Amargo despertar". Belo filme. A história de um cara que tinha Mal de Parkinson. Horror, não quero me lembrar de doenças agora. É nisso que dá ficar acordada. Fico pensando bobagens. Lembrei do filme e agora estou pensando no meu tio, que está doente. Xô, pensamento. Pai nosso que está no céu, santificado seja vosso nome... devia ter comprado o lexotan. Eu prometi que não tomaria mais. Mas eu deveria ter o bendito guardado para essas ocasiões. Deveria nada. Se tivesse, não usaria nessas ocasiões. Tomaria todos os dias, como fiz durante vários anos. Esqueça. Agora não tem mais. Prometeu, tá prometido. Afinal, o que é deixar um lexotanzinho para quem conseguiu deixar dalmadorm, dormonid? Vou contar. Mil duzentos e um, mil duzentos e dois... mas que número grande. Sempre começo depois do mil, pois se começar do um parece que não dá certo. Mil duzentos e três. Na hora em que eu começar a embaralhar os números é sinal de que estou quase dormindo. Mil duzentos e quatro... houve uma época em que eu contava de cem para baixo. Noventa e nove, noventa e oito, noventa e sete... mas chegava ao um tão depressa que resolvi contar aumentando. Tem mais lógica. Amanhã preciso fazer tanta coisa na rua. Ai, que dor nos braços. Por que será que insônia dá dor nos braços? Se eu estiver nessa draga amanhã, não conseguirei fazer a metade do que tenho para fazer. Duas e quarenta e cinco. Se eu estivesse com meus amigos lá onde costumamos nos encontrar às quartas, nada estaria me doendo e amanheceria bem depressa. Mas eu nunca posso ficar até tão tarde. Pai nosso... não quero mais rezar. Não consigo mesmo. O que aconteceria se nessa hora eu pegasse o carro e saísse? Que vontade de fazer uma loucura. Imagine. Vou lá pra boca do lixo. Onde é mesmo a boca do lixo de São Paulo? Ainda deve ser na Major Sertório, na Rua Aurora, esses lados. Chego lá, onde tenha gente agrupada, provavelmente fumando maconha ou cheirando (às vezes me dá uma vontade de experimentar), paro o carro. Desço com nariz bem empinado e grito assim pra quem estiver lá: "ô seus filhos da puta! ô cambada de marginal!!!". Será que levo um tiro? Sempre tive essa curiosidade. Será que fariam alguma coisa comigo? Sabe que eu teria coragem? Ou será que ficariam meus amigos? Mas claro que não vou fazer isso. Que diriam meus filhos se eu morresse assim? Imagino a manchete no jornaleco: "jovem senhora de classe média morta a tiros (ou cortada com facas e canivetes) na boca do lixo de São Paulo". Como meus meninos explicariam que sua mãe estava num lugar daqueles, àquela hora? Pobrezinhos. Preciso pensar neles até na hora da loucura. Jamais iriam pensar "pobre mamãe, estava na contramão da noite".

Chega. Vou levantar. Vou ligar o computador, escrever uma crônica e depois, juro, vou conseguir dormir. É sempre assim.