terça-feira, 28 de dezembro de 2010

TEMA 36 - SÓSIA

O SÓSIA DO DIABO
Mariazinha Cremasco


Era uma menina comum. Brincava, estudava, brigava. Foi mais ou menos aos oito anos de idade que percebeu que era diferente das outras: ela acreditava que "via" coisas.

Tudo começou com um sonho. Sonhou que estava em frente à penteadeira da mãe, olhando-se no espelho. Porém o que via não era sua imagem refletida, e sim um homem moreno, feio, com rugas na testa e traços marcantes. O homem olhava fixamente para ela com seus olhos de fogo e mastigava. Seu maxilar quadrado subia e descia lentamente, mastigando bolinhos que pegava em um prato. Colocava um na boca, mastigava cuidadosamente e engolia. E então, outro bolinho aparecia no prato vazio. E ele comia outra vez, sempre olhando para a menina.

Ela acordou apavorada. Chamou a avó, que dormia no mesmo quarto. Tentou contar o pesadelo, mas a velha lhe pediu que voltasse a dormir: era só um sonho. Mas a menina não conseguia esquecer o homem do espelho. Parecia tão real, não poderia ser apenas sonho. Acabou adormecendo de pura exaustão.

Alguns dias depois, numa manhã de domingo, a menina, bem arrumada, com vestidinho rodado, sapatinhos brancos e fita no cabelo, saiu com a avó. Coincidentemente, essa era a mesma roupa que usava no sonho do espelho, mas ela nem percebeu isso.

Apanharam o ônibus e a menina sentou-se toda feliz na janelinha, ao lado da avó. Ela adorava os domingos. Dizia que esse dia da semana tinha um cheiro diferente, muito agradável. Os domingos sempre traziam um grande bem-estar. Assim perdida em seus pensamentos, olhava para a rua, analisando tudo o que via: casa bonita, casa feia, lado da rua par ou ímpar, pessoas com roupas coloridas, árvores e flores. Prestava atenção nas diferentes tonalidades de verde das folhas.
Então o ônibus parou em um ponto que ficava bem na frente de um bar. A menina esticou os olhos e, lá dentro do bar, ela viu um homem. Não. Ela viu o homem. O mesmo homem do espelho. Como no sonho, ele olhava para ela fixamente, enquanto comia bolinhos que tirava de um prato. E mastigava pacientemente, depois engolia e pegava outro. O mesmo rosto, a mesma testa vincada, o mesmo olhar de fogo, a expressão dura e o maxilar quadrado.

A menina começou a tremer incontrolavelmente, o que assustou a avó, que queria saber o que estava acontecendo. O ônibus partiu e só então ela contou do homem que vira no bar. A avó, que não tinha visto ninguém, disse algo que a apavorou ainda mais: é o diabo! É o diabo! Só o diabo tem um prato que nunca fica vazio, por mais que se coma.

Nunca mais a menina conseguiu dormir no escuro. Depois desse dia, começou a ver coisas estranhas e isso nunca mais parou. Depois de adulta, com freqüência olhava para uma criança ou jovem e conseguia vê-la velha. Ou então via um velho e adivinhava seu rosto quando criança. Outras vezes, ao conhecer alguém, tinha a sensação de enxergar aquela pessoa morta: pálida, deitada no caixão, coberta de flores, das quais imaginava até a cor.

Ela acabou se habituando às visões, mas nunca deixou de se assustar com elas. Em algumas situações, quando vê um homem qualquer muito nervoso, brigando por alguma coisa, sente o mesmo pânico da infância. Vê a boca crispada, a testa cheia de vincos, o maxilar comprimido e teme estar diante do sósia do diabo.

TEMA 34 - LABIRINTO

PEG E (NÃO) PAGUE
Mariazinha Cremasco


Afanásio era um homem lá dos seus cinqüenta e poucos anos. Casado com a mesma mulher há quase trinta anos, competente no trabalho, corretíssimo e muito, muito chato. Sua chatice não tinha razão de ser. Era chato e pronto. Intolerante, rabugento, implicante, sem paciência para nada. Tinha dificuldade em demonstrar sentimentos, o "seu" Afanásio. Às vezes parecia um tirano, outras vezes, um pobre coitado.

As pessoas do seu convívio tentavam enaltecer suas qualidades, que diga-se de passagem, não eram poucas. Homem honesto, fiel, incorruptível. Só que exagerava no direito de ser chato. Chegava a ser insuportável. Criticava tudo e todos, senhor absoluto da verdade - e que ninguém ousasse desafiá-lo. Tinha preconceitos absurdos contra advogados, judeus e japoneses. Não gostava de mineiros, pobres, pretos e homossexuais. Detestava gente do ABC e pessoas que estacionam de marcha à ré nos supermercados. Tinha pavor de quem fala ou escreve errado e de funcionários públicos. Achava que quem trabalha muito é burro e abominava psicólogos. Detestava médicos também, embora precisasse deles, como qualquer outra pessoa. Odiava velhos ("por que não morrem logo, ficam aí fazendo hora extra!") e crianças ("são todas mal educadas e estão sendo treinadas para ser prostitutas ou trombadinhas"). Um dia, assistindo à televisão rimos muito quando vimos uma menininha dançando a boquinha da garrafa. O comentário do Afanásio: "essa está colocando a xoxota a juros".

Pertencia à classe média alta. Tinha poupança, aplicações, dinheiro guardado. Nada lhe faltava. Homem previdente e econômico: econômico no sexo, econômico no amor, econômico nas finanças, econômico em tudo.

Um belo dia, decidiu parar de fumar. E engordou. E ficou incomodado. E teve medo. Não conseguia parar de comer doces. A única saída que encontrou foi comprar balinhas diet, para suprir sua necessidade de açúcar. Foi ao supermercado e se indignou com o preço dos produtos diet, caríssimos. Ficou indeciso por momentos e, quando se deu conta, já tinha pego uma latinha de balas, aberto a embalagem, enfiado uma na boca e guardado a caixinha metálica no bolso da camisa.

Mal sabia que à partir deste dia entraria num labirinto. Labirinto, sim: sem saída. O final do caminho. Passou a ir todos os dias a supermercados, vários, um após o outro. E furtava balinhas e chicletes "no sugar". Fez daquilo sua diversão. De balinhas e chicletes passou a pilhas e baterias. A coisa foi crescendo e, logo, já vinha para casa com aparelhos de barba, pregos, parafusos, escovas de dente, revolveres de mangueira de jardim. Ia ficando cada dia mais atrevido, cada vez mais sofisticado nos seus furtos. Até que passou a freqüentar a seção de produtos alimentícios. Aí ninguém mais o segurava. Roubava vidrinhos e vidrinhos de condimentos. Desde os mais simples, como canela em pó e pimenta do reino, até os mais sofisticados, como curry e endro. Um dia chegou ao ponto máximo da cara de pau. Levou para casa, escondidos nos bolsos, vidrinhos de alcaparras e de aliche importados.

"Seu" Afanásio, o incorrupto, o homem correto, que calculava centavos, o homem que não lesava ninguém e que não admitia ser lesado, estava absolutamente viciado em pequenas contravenções, para pavor de sua mulher, que me contou essa história com lágrimas nos olhos. Achei muito triste, embora tenha dado minhas gargalhadas lá no íntimo. Como vizinha desse homem tão chato, que gritava com meus filhos, que não admitia que meu carro ficasse um milímetro na "sua" calçada, que reclamava que as folhas da "minha" árvore sujavam a rua, que não devolvia bolas nem pipas que caíssem em seu quintal, me senti um pouquinho vingada. Afinal, em todo labirinto há um minotauro. Para Afanásio, o minotauro é o Zé da segurança, que um dia vai fazê-lo esvaziar os bolsos na mesa da salinha dos fundos.

TEMA 33 - COMIDA

O PÃO NOSSO DE CADA DIA

Mariazinha Cremasco & Valentina Alcàzar

Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Mas tinha fogão. Que é que tem para comer? Manhê, tô com fome. Não tem pão? Que comam brioches. Grude, gororoba, bóia, rango. Comer, comer. Comer gato por lebre. Comer mortadela e arrotar peru. Paiê, compra doce? Quero doce! Minha avó dizia: vocês não têm fome, vocês tem apetite. Só um pedacinho, por favor, pode ser da ponta. Você é um docinho. Ai, meu colesterol. Mas esse menino não fica quieto. Dá comida para ele que ele pára. Ou dá um pirulito, vai ver: enquanto está comendo, dá sossego. Vamos jantar fora hoje? Você tem fome de quê? Adoro pizza com guaraná. Sou tempo do guaraná de rolha. Senta, menino, come direito! Tenha modos à mesa. Que foi? Vomitou de novo? Você tem o olho maior do que a barriga. Ai, me pega um sonrisal, joga na água. Miojo, miojo, miojo, é o macarrão que satisfaz. Ufa! Arroz e feijão de novo? A gente não quer só comer, a gente quer comer e quer fazer amor. Você é tão linda, assim branquinha, estou me apaixonando, não é só sexo, mas juro que quero comer você todinha. Meu amor, nós dois combinamos mais do que ovos com bacon. Seus olhos são como duas azeitonas. Seus cabelos parecem espaguetes. Romeu e Julieta, que coisa mais careta. Mulher, joga água no feijão que hoje eu vou levar o time pra jantar em casa. Eca, essa comida tá sem tempero. Ai, meus sais, não aguento mais cozinhar!!! É, a rapadura é doce mas não é mole não. Olha o Mac Donald's alí. Pára. Pára. Entra no drive thru. Batatinha frita um dois três. Três hamburguers, por favor. Você quer catchup? Ai que fome. Que é que tem pra comer? Pão, laranja (todas as mães respondem isso um dia: pão, laranja). Arroz! Feijão! Batata e macarrão! Odeio fígado. Toma um eparema que melhora. Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto, eu tô voltando. Disque. Disque. Disque pizza. Disque comida chinesa. Vamos à churrascaria? É só $9,90. Por favor. A partir de hoje não se frita mais bife nessa cozinha que eu odeio limpar fogão, entendeu?! É melhor morrer gordo e feliz do que magro e triste, ele dizia, e agora está tão magro, será que ficou triste? Jurema, tira o almoço, só duas folhas de alface e um pedaço de nabo, que não posso engordar nem um grama. Vivo de regime, não lembro dia da minha vida em que tenha comido sem calcular as calorias. Compra um número um? Então só um big-mac? Então só uma batatinha? Pôxa, mãe. Compra só uma casquinha então. Porque eu, minha filha, não quero ser "magra", eu quero é ser seca, esquelética. Ufh, não sei como vocês conseguem comer tanto. Marmelada de banana, bananada de goiaba, goiabada de marmelo. Pamonhas, pamonhas, pamonhas. Pamonhas de Piracicaba. Morangos de Atibaia. Festa do figo de Valinhos. Festa da uva de Vinhedo. Festa de Nossa Senhora da Acheropita. Não se leva sanduíche em festa. Credo! Crepe. Creme. Crispis. Croquete. Crocante. Crush. O que é que tem de almoço? Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa. De novo essa "gosma"? Faz uma lasanha, vai. Frango de televisão? Nem pensar. De hoje em diante, elegerei para meus amigos apenas e tão somente garçons e maitres de churrascaria. Eles sim, me tratam bem. São gentis, educados. Onde se ganha o pão não se come a carne. Não, não e não! Então quero batata frita. Compra doce paiê, compra doce paiê, compra doce paiê!!! Sonham com bife à cavalo, batata frita e a sobremesa é goiabada cascão com muito queijo depois café, cigarro e um beijo. Ai, ai. Fechou meu pilórico. Amor não enche barriga, meu bem. Feijão, feijão, feijão, o preto que satisfaz. Deixa eu dar uma mordidinha? Uma vez comi salame na sexta-feira santa, que pecado! Não dou esmola não, que eles gastam tudo em cachaça. Bebida é água, comida é pasto. Meus filhos? Comem que nem uns bois. Vem cá, meu amorzinho, olha, o papai vai fazer aviãozinho vruuuuummmmmm, você tem que comer pra crescer e ficar forte. Gelatina? Não tem graça nenhuma. Quero bolacha recheada. Posso fazer um hamburguer, mãe? Não! Suja demais o fogão. Fica com cheiro na casa toda. E a mãe, fica com o copo. Mas sempre tem a cama pronta e rango no fogão. Eu janto pensando no almoço de amanhã. Carboidratos só antes das 14:00hs, massa engorda, chocolate dá espinhas e carne aumenta o colesterol. O verdadeiro baurú nasceu no ponto chic! Quero patê de língua de colibris indonésios. Amanhã de manhã, vou pedir o café pra nós dois. Hora de dormir, meu filho. Empanzinado, entubado, lotado, cheio, engazopado, entupido, estufado, até a tampa, até os olhos. Vamos rezar: o pão nosso de cada dia nos dai hoje e também nos dai amanhã e depois de amanhã e para todo o sempre, amém.

domingo, 5 de dezembro de 2010

TEMA 32 - Na Contra mão

NA CALADA DA NOITE
Mariazinha Cremasco

Duas horas da manhã. Não consigo dormir. Justo hoje que deitei cedo, pois estou tão cansada. Tenho tantas coisas para fazer amanhã. Desde a meia noite estou na cama. Vou levantar. Não. Não devo. Se levantar, desperto. Desperto de quê? Ainda não dormi, nem mesmo cochilei, despertar de quê? "Amargo despertar". Belo filme. A história de um cara que tinha Mal de Parkinson. Horror, não quero me lembrar de doenças agora. É nisso que dá ficar acordada. Fico pensando bobagens. Lembrei do filme e agora estou pensando no meu tio, que está doente. Xô, pensamento. Pai nosso que está no céu, santificado seja vosso nome... devia ter comprado o lexotan. Eu prometi que não tomaria mais. Mas eu deveria ter o bendito guardado para essas ocasiões. Deveria nada. Se tivesse, não usaria nessas ocasiões. Tomaria todos os dias, como fiz durante vários anos. Esqueça. Agora não tem mais. Prometeu, tá prometido. Afinal, o que é deixar um lexotanzinho para quem conseguiu deixar dalmadorm, dormonid? Vou contar. Mil duzentos e um, mil duzentos e dois... mas que número grande. Sempre começo depois do mil, pois se começar do um parece que não dá certo. Mil duzentos e três. Na hora em que eu começar a embaralhar os números é sinal de que estou quase dormindo. Mil duzentos e quatro... houve uma época em que eu contava de cem para baixo. Noventa e nove, noventa e oito, noventa e sete... mas chegava ao um tão depressa que resolvi contar aumentando. Tem mais lógica. Amanhã preciso fazer tanta coisa na rua. Ai, que dor nos braços. Por que será que insônia dá dor nos braços? Se eu estiver nessa draga amanhã, não conseguirei fazer a metade do que tenho para fazer. Duas e quarenta e cinco. Se eu estivesse com meus amigos lá onde costumamos nos encontrar às quartas, nada estaria me doendo e amanheceria bem depressa. Mas eu nunca posso ficar até tão tarde. Pai nosso... não quero mais rezar. Não consigo mesmo. O que aconteceria se nessa hora eu pegasse o carro e saísse? Que vontade de fazer uma loucura. Imagine. Vou lá pra boca do lixo. Onde é mesmo a boca do lixo de São Paulo? Ainda deve ser na Major Sertório, na Rua Aurora, esses lados. Chego lá, onde tenha gente agrupada, provavelmente fumando maconha ou cheirando (às vezes me dá uma vontade de experimentar), paro o carro. Desço com nariz bem empinado e grito assim pra quem estiver lá: "ô seus filhos da puta! ô cambada de marginal!!!". Será que levo um tiro? Sempre tive essa curiosidade. Será que fariam alguma coisa comigo? Sabe que eu teria coragem? Ou será que ficariam meus amigos? Mas claro que não vou fazer isso. Que diriam meus filhos se eu morresse assim? Imagino a manchete no jornaleco: "jovem senhora de classe média morta a tiros (ou cortada com facas e canivetes) na boca do lixo de São Paulo". Como meus meninos explicariam que sua mãe estava num lugar daqueles, àquela hora? Pobrezinhos. Preciso pensar neles até na hora da loucura. Jamais iriam pensar "pobre mamãe, estava na contramão da noite".

Chega. Vou levantar. Vou ligar o computador, escrever uma crônica e depois, juro, vou conseguir dormir. É sempre assim.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Tema 031 - DISFARCE

A CORTINA
Mariazinha Cremasco

Sabe aqueles dias em que você não vê graça em nada, em que tudo parece escuro, sujo e feio? Pois é, num desses dias, sentada sozinha na sala, comecei a olhar detalhadamente todos os móveis. Não vi graça nem beleza em nenhum. A cortina - coitada - acabou se tornando o alvo da minha crítica e do meu mau humor.
Fiquei olhando pra ela e pensando em sua utilidade. Como eu a vejo e para quê ela serve. Para tapar o sol naquelas horas em que ele entra impiedosamente no lugar onde estamos trabalhando, vendo tv, brincando com nossos filhos, tendo uma conversa séria com alguém (até mesmo uma entrevista de trabalho) ou namorando. É bom namorar à luz do dia, sim senhor. Mas o sol direto no rosto incomoda um pouco.

Pode ser usada também (a cortina) como um disfarce. Preste atenção: na maioria das vezes a cortina é muito maior do que a janela. Ela toma a parede inteira e a janela, coitadinha, tão pequenininha ali, escondida pela cortina. A cortina nessas horas passa a ser um disfarce. Ah, sem contar que em alguns casos o disfarce é tamanho que nem janela há. A cortina está lá. De enfeite. Ora tapando imperfeições na parede, ora para harmonizar o ambiente. Disfarce puro. Tudo isso sem contar (nos casos em que há janelas) que serve também para olhar pela brechinha quando a campainha toca e não atender aos testemunhas de Jeová, inconfundíveis.

Foi olhando para a janela de minha sala, ou melhor, foi olhando para a cortina de minha sala que fiquei pensando em tantas coisas que gostaríamos de tapar, assim como a cortina. Ou que gostaríamos de descobrir, abrindo literalmente a mesma, porém não temos coragem. Estou sendo incoerente? Tá difícil entender? Vou tentar ser clara.

Cortinas servem para tapar. Tapar imperfeições, tapar a claridade, tapar a parede, tapar o vidro sujo. Disfarces servem para tapar o que não somos ou o que gostaríamos de ser. Homens infelizes disfarçados de bons filhos, bons empregados, bons pais, bons maridos. Mulheres insatisfeitas disfarçadas de super-mulheres, super-mães, amigas, amantes. Gente que gostaria de quebrar regras, libertar-se de leis e esquemas, porém vestidos com a cortina do dia-a-dia, escondendo-se de si mesmos.

Disfarça-se tudo. Disfarça-se a insensatez, disfarça-se a infidelidade, disfarça-se o desejo de "ser", disfarça-se o preconceito, disfarça-se a vontade de amar, a vontade de enganar, a vontade de mandar tudo às favas, disfarça-se a vontade de viver, de criar asas e voar.

Tudo em nome de que? De sermos "normais". Cruzes. Coisa mais chata aquela cortina arrumadinha, engomadinha, certinha, lavada de mês em mês, sendo aberta e fechada com cuidado para durar mais, para viver bem por mais alguns anos. Viver bem? O que é viver bem? Economizar? Guardar? Prover? Prever? Previnir? Ou será que viver bem é remediar? Estamos sempre remediando. Será que isso nos basta? Será que isso é viver?

Pobre cortina. Pobre ser humano, que quer ser normal. Pobres de nós, que para viver precisamos disfarçar. Chegou a hora. Quero tirar a máscara. E para começar, vou arrancar as cortinas da sala e deixar a luz do sol entrar.

Tema 029 - NO MEIO DA ALEGRIA

AS TIAS
Mariazinha Cremasco


Júlio estava de viagem marcada. Ia fazer M.B.A em Harvard. Estávamos no carro, indo para seu "bota-fora". Estudante profissional. Era assim que meu marido classificava o sobrinho. Se eu não o conhecesse tão bem, diria que ele estava com inveja.
Júlio era de família classe-média e estava casado com uma moça muito rica, filha de banqueiro. Vivia bem, morava bem e estava sempre estudando. Um curso atrás do outro. Agora, quem diria, fora aceito em Harvard. Estudante profissional.

Íamos pela Raposo Tavares, num lindo domingo de sol e céu azul. As crianças num fogo só, excitadíssimos. Falavam pelos cotovelos e eu só recomendando que se comportassem, que não fizessem comentários. Eles eram terríveis. Tinham um vocabulário riquíssimo e um talento especial para apelidar pessoas. Para que se tenha uma idéia, um dia apelidaram um amigo da escola de "Mentira". Tanto o chamavam assim que o menino, de Mentira, passou a ser "Mente". Era conhecido apenas por "Mente". Um dia perguntei a razão desse apelido. Devia-se ao fato do menino mentir muito? Me explicaram que não. Era simplesmente porque mentira tem perna curta. Que crueldade. Mente nem era tão baixinho, mas realmente tinha pernas curtinhas. Mentira. Mente. Agora imagine a minha preocupação numa festa de família com essas pestinhas. Todas as tias com apelidos. Meu Deus!

Chegamos ao elegante condomínio na Granja Viana e eu continuava recomendando: não corram, não gritem, não mexam nas plantas, sejam normais, por favor, sejam normais, e todas aquelas coisas que as mães chatíssimas costumam dizer para os filhos.

A mãe de Júlio, irmã de meu marido, nos recebeu. Imediatamente, involuntariamente, olhei pros pestes e me lembrei do apelido dela, "Sra Voorhees". Aquela, mãe do Jason do "Sexta-Feira 13". Cá pra nós... ela é a cara da mulher de Cristal Lake. Embuti meu riso e entramos.

Logo vimos Bete, outra tia. Muito maquilada. Ela era assim mesmo. Pintava-se ao sair da cama e para qualquer ocasião. Sobrancelhas negras arqueadas, reforçadas pelo lápis preto. Isso lhe valeu o apelido de "Diaba". E aqueles meninos rindo, ah se eu pudesse tapar a boca deles! Imaginem a Sra. Voorhees e a Diaba - que dupla!

A Diaba... desculpe, a Bete, era uma mulher profundamente infeliz, reclamona, triste. Não achava graça em nada. Tinha o hábito de fazer "comentários", digamos, sobre a vida alheia. Tanto que, mal me viu, foi logo dizendo:

- Você viu a Ofélia (uma velha amiga da família)? Nossa, como ela está velha, acabada, enrugada. E olha que tem a minha idade. Estudamos juntas. Eu não estou assim, não é? Estou bem melhor que ela, não acha? Deus me livre, como ela está feia.

Antes que eu pudesse responder (sorte minha), a endiabrada Bete saiu do meu lado e foi, provavelmente, procurar outra vítima.

Me flagrei procurando a Ofélia. Lógico. Não demorei a avistá-la. Ao contrário de Bete, Ofélia era alegre, extrovertida, atirada, recém saída de um casamento. Tinha um gatil em casa. Confidenciou-me que criava quarenta gatos. Descabelada, falante, recebeu o apelido de "Ofélia, a louca".

Mal nos cumprimentamos e Ofélia me vem com essa, curta e direta:

- Menina, estou passada! Como a Bete está horrorosa, acabada. Que feia! Não se cuida, se pinta demais, fica com aparência de ser pelo menos dez anos mais velha. E olha, nós temos a mesma idade. Eu não estou como ela, não é?

- Não... - respondi, incrédula com o que estava acontecendo - claro que não...

Hilário. Com tanta gente na festa, no meio da alegria, por que eu, logo eu, fui o alvo das duas? Só rindo mesmo.

Já que fui metralhada por ambas, comecei a observar, avaliar. Se elas próprias não me tivessem chamado a atenção sobre a aparência uma da outra, acho que nem notaria o quanto estavam envelhecidas. E tínhamos todas a mesma idade!

Disfarcei um sorriso e fui pedindo licença, passando por entre os grupos animados em direção ao lavabo, convencida de que queria apenas lavar as mãos e retocar o batom. Mas ao acender a lâmpada estrategicamente instalada sobre o espelho, observei meu rosto com atenção. Pequenas marquinhas de expressão, mas a pele continuava viçosa e saudável e os cabelos bem arrumados, bonitos. Meus olhos brilharam de satisfação enquanto passava cuidadosamente o batom pelos lábios.

Eu estava muito melhor do que as duas.

Tema 020 - AMORES ILÍCITOS

A QUE FOI (SEM NUNCA TER SIDO)
Mariazinha Cremasco


Naquele dia Rosa acordou desanimada. Dificilmente sentia-se assim. Era alegre, extrovertida, cheia de vida. Nunca reclamava de nada. Quase nada a abatia.

Sentou-se. Cotovelos na mesa, apoiou a cabeça entre as mãos, respirando fundo. Seus olhos passeavam devagar pela cozinha pequena. Como era velha aquela casa. Os batentes da porta encardidos. A pia pequena, lotada de louça suja do jantar. Panelas destampadas. Como eram desorganizados e relaxados seus filhos. Com muito esforço, levantou-se da mesa, procurou uma caneca sob a montanha de pratos. Colocou água no fogo. "Talvez um café me ajude". Sentia os chinelos surrados grudando no piso vermelho. Enquanto preparava o café pensava que os filhos deviam ter ido dormir muito tarde, tamanha era a desordem. Ela não ouvira nada. Dormia como uma pedra. Era sempre assim. Ainda bem que dormia pesado. O bairro era barulhento e a janela de seu quarto dava diretamente para a rua. Imagine se não dormisse bem. Estaria perdida. Trabalhava o dia todo em casa. Para quê? Não ganhava quase nada. Vendia salgadinhos para o bar do Seu Manoel. Mas o maldito português era duro de pagar. Precisava gastar muita saliva para receber de vez em quando.

Fazia também docinhos e bolos para fora. Mas sabe como é... bairro pobre, cobrava pouco. De algumas nem cobrava. Eram vizinhas, amigas. Levavam os ingredientes, ficavam enfiadas em sua casa e Rosa fazia. Tinha talento, a mulher.

Geraldo, o marido, era caminhoneiro. Só trabalhava quando solicitado. E as viagens estavam cada vez mais espaçadas. Geraldo era devagar, tranqüilo, sossegado... Para falar a verdade, ela também era. Não se preocupava com quase nada. Deixava tudo por conta de Deus e do destino, ainda mais agora que estava descobrindo os livros de auto-ajuda e esoterismo. Pensou que os filhos não tinham puxado a ela. Detestavam ler. Ela lia muito, gabava-se de ter lido todos (ou quase todos) os livros de Sidney Sheldon, Harold Robbins, Cassandra Rios, Adelaide Carraro e até alguns de Jorge Amado. Lera até "Quarto de Despejo", de Maria Carolina de Jesus, uma catadora de papéis. Chorou muito quando leu este livro. Era uma espécie de diário. Que vida sofrida teve aquela mulher. Quando se lembrava, percebia que não podia se queixar. Não que costumasse reclamar. Hoje é que estava assim, estranha, triste.

Tomou o café, fumou um cigarro e enfrentou a cozinha. Jogou todos as sobras de comida fora (que desperdício), afinal as panelas estavam abertas, sabe-se lá que bichos poderiam ter passado por ali.

Cozinha limpa, pegou a roupa suja espalhada no banheiro, entrou no quarto onde dormiam os filhos, recolheu mais roupa suja no escuro mesmo e as enfiou de qualquer maneira na máquina. Dane-se! Quem mandou deixar tudo espalhado? Que manchem!

Nesse dia, resolveu dar um basta. Decidiu que iria trabalhar fora. Metida como estava com auto-ajuda, mentalizou com toda sua força um emprego. Abriu a porta da frente e viu o entregador da Gazeta do bairro. Pegou o jornal. Sentou-se na sala desarrumada e começou a ler os classificados. "Precisa-se de auxiliar de escritório". Rosa sorriu. Sabia que era para ela aquele emprego. Uma pequena metalúrgica no bairro. Candidatou-se e conseguiu a vaga. O salário era pequeno, mas melhor que nada. O marido não quis, esperneou, brigou e até chorou, mas ela foi mesmo assim. E gostou, se deu bem. Pelo menos o dinheirinho no final do mês era certo.

Foi lá que Rosa conheceu Vitório, um vendedor que visitava a empresa todas as quintas-feiras. Vitório não tinha muitos atrativos físicos, mas era gentil, educado, atencioso, bom papo. E Rosa foi se envolvendo. Ele a elogiava. Ela gostava daquilo e esperava com desespero pelas quintas-feiras.

Um dia, numa viagem de Geraldo, foram tomar um chopinho. Absolutamente tímidos, nada aconteceu. Apenas um breve beijinho de despedida. O suficiente para Rosa quase morrer de remorso e, ao mesmo tempo, de excitação.

Esse fato só aguçou o desejo dos dois e, algumas semanas depois não se contiveram e aconteceu o inevitável. Foram a um motel. Rosa desesperou-se no caminho. E se alguém a visse? Uma vez ultrapassada a porta de entrada, resolveu que se soltaria. Liberaria. Afinal, não era mais uma garotinha. Sabia o que queria. Precisava saber como era ter outro homem. Ofereceu-se languidamente.

Vitório, no entanto, revelou-se um perfeito imbecil. Ficou nu, só de meias pretas. Cheirava a mofo, o infeliz. E o beijo? Beijo babado, boca mole, um horror. E gabava-se, achando-se o máximo - segurança essa talvez decorrente do fato de possuir um membro de proporções respeitáveis. Isso sem contar que o hálito do homem indicava que o almoço havia sido regado a muito azeite e alho.

Rosa sentiu um zumbido nos ouvidos. O que esperava há tanto acabou se transformando num pesadelo, uma tortura. Simulou uma crise de arrependimento e exigiu que saíssem dali. Vitório, assustado, obedeceu. Vestiu-se desajeitadamente e saíram. Foram do motel ao ponto de ônibus onde ela a deixaria em silêncio. Rosa saltou do carro e bateu a porta sem uma palavra de despedida. Seu breve caso extra-conjugal estava acabado antes mesmo de ter se consumado.

Ela continuou trabalhando na metalúrgica por mais dois anos. Vitório continuava a ir todas as quintas-feiras ao escritório, mas quase não se olhavam.

Em casa, as coisas seguiam como sempre. Seu marido caminhoneiro, o bronco, que não lia e não se informava, que comia com a colher e falava errado, era maravilhoso. Fazia amor divinamente, do jeito que Rosa gostava. Puxava os cabelos, jogava na parede, chamava de lagartixa. Ele era o seu amor, o seu lícito amor.

E como era gostoso o seu beijo.

Tema 019 - FAZ DE CONTA

SIMPLICIDADE. SIMPLICIDADE?
Mariazinha Cremasco


"Acredito que as coisas simples da vida são as mais importantes". Essa frase foi escrita por uma amiga em um livro meu, como dedicatória. Fiquei pensando no quanto é simples ou complicado ser feliz.

Fui uma criança pobre. Não fazíamos de conta que éramos felizes. Éramos felizes de fato. Estávamos sempre juntos. Dividíamos problemas, alegrias e sonhos. Nossas brincadeiras eram deliciosas. Meu pai nos levava a passeios incríveis, onde tudo o que gastava era a criatividade. Íamos jogar pedra no rio. Já viu coisa mais inocente? Na verdade, o rio não era rio. Era um córrego. Córrego dos Meninos, no ABC. Outra coisa que costumávamos fazer: Contar carros e ônibus na Via Anchieta. Meu pai fazia a contabilidade. Ganhava quem acertasse mais o número de carros e marcas que passavam em xis minutos. O que ganhava o vencedor? Apenas a alegria de ter ganho. Gostosas gargalhadas. Simples, não?

Vejo hoje, que as pessoas precisam de mais, muito mais para serem felizes. Que pena. Quando tive meus filhos, eu tinha a noção de que a vida não era cor-de-rosa como a gente via nas revistas. Pais lindos e sorridentes. Mães arrumadíssimas, cheirosas, sem um fio de cabelo fora do lugar. Bebês igualmente cor-de-rosa e sorridentes. Nunca brinquei de faz-de-conta-que-comigo-vai-ser-assim. Sabia que bebês choram à noite, fazem cocô, vomitam, ficam doentes. Pô, mas não sabia que era tanto assim. Quantas noites, quantas preocupações. Mas... e a felicidade? Ela estava ali. Nas pequenas coisas. Nas descobertas. Em cada progresso, em cada detalhe, em cada coisa nova que faziam ou aprendiam. Na verdade, como diz essa minha amiga, ali. Ali estava ela. Nas coisas mais simples.

Hoje tento passar isso aos "pequenos". Não acredito que com sucesso. Está cada dia mais difícil sonhar, ver e contentar-se com pequenas coisas, pequenos gestos.

Convivo com pessoas, sendo eu mesma uma delas, que vivem rodeadas por vídeo-cassetes, DVDs, computadores, carros, TVs a cabo, aparelhos de som, disc-man, viagens. As pessoas precisam de cada vez mais. E ainda assim não sorriem. O que será que falta? Não, não sou a favor de me enfiar no mato e ficar olhando estrelas, sem luz nem água. Adoro todo o tipo de conforto e de coisas modernas que facilitam a vida. Mas sobretudo, gosto de gente. De que me vale assistir a um bom filme, sem um amigo, ou filho, para comentar, rir ou chorar juntos? As pessoas estão cada vez mais sós... mais voltadas para si mesmas.

Simplicidade. Talvez seja essa a palavra. Talvez seja isso que esteja faltando. Olhar, perceber, sentir, sonhar, dividir. Entrar talvez no mundo do faz-de-conta, alguns minutos por dia.

É, a cada dia mais me convenço de que a felicidade está nas coisas mais simples da vida, não é mesmo, Sônia?

Tema 019 - FAZ DE CONTA

MARIA, MARIA
Mariazinha Cremasco


- "Acorda, menina! Sai desse mundo de faz de conta".

Era minha avó. Percebia que eu estava "viajando" e me chamava de volta à realidade.

- "Me deixa, vó!"

Nós nos dávamos muito bem. Nos amávamos. Ela era muito moderna para a época. Eu adorava isso nela. Achava lindo que eu usasse mini-saia. Meu pai implicava, e ela defendia.

- "Deixa a menina. O que é bonito é para ser mostrado. Essa menina tinha que ser miss."

Claro que ela me via com olhos de avó. Os olhos do amor. Aliás, lindos olhos verdes, que só minha prima mais velha herdou. Para ela, eu só tinha qualidades...para mim, ela era perfeita. Eu também a olhava com os olhos do amor.

Saíamos muito juntas. falávamos sobre tudo. Namorados, homens, política, carros, crimes, sexo. Tudo. Até beijo de "selinho" nos dávamos.

Vaidosíssima, era incapaz de atender a porta sem antes tirar o avental, ajeitar os cabelos e dar pequenos beliscões nas bochechas. Eu achava tanta graça naquele gesto. Era tão lindo. Eu era capaz de ficar minutos olhando para ela. Tudo o que eu mais queria era ser parecida com ela.

- "Acorda, menina! Sai desse mundo de faz de conta".

O tempo passou, casei, tive meus filhos.Nunca ficamos longe uma da outra. Todas as quartas-feiras ela passava o dia comigo. Acompanhava a rotina da casa. Ia comigo levar os meninos à escola, à natação, fazíamos supermercado. Os meninos a amavam. A Bisa. A Bisa bonita.

Nesses dias, ela me dava pequenos "toques" sobre arrumar-me mais, preocupar-me menos, sonhar mais, viver mais, afinal, dizia, tudo está nos eixos. - "Você tem se esquecido de si mesma". Hoje, compreendo. Na verdade ela queria dizer: - Sonhe, volte a sonhar. Sonhar é bom.

Minha avó morreu em 1986. Meus filhos se lembram bem dela. Tivereram esse privilégio. Alguns meses antes de sua morte, eu ia visitá-la, levando os meninos. Ela me olhava longamente. Hoje sei que a sonhadora era ela. Nessas horas, eu é quem dizia: -"Acorda, vó! Sai desse mundo de faz de conta."

Hoje meus filhos têm, como eu tive, uma avó maravilhosa. Eu? Faço de conta que sou feliz. Talvez seja mesmo feliz, na maior parte do tempo. Reaprendi a sonhar. Sonhar é bom.

Faz de conta, vó Maria, que a cada vez que eu sentir saudade e pensar em você, os anjos soprem no seu ouvido a nossa música:

Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria.
Mas é preciso ter manha,
é preciso ter graça, é preciso ter sonho, sempre.
Quem traz na pele essa marca,
possui a estranha mania de ter fé na vida

Tema 018 - PENSAMENTOS IMPERFEITOS

O DEUS DO KADETT BRANCO
Mariazinha Cremasco


Sueli estava azeda naquela manhã de domingo. Dormira mal, a casa estava uma bagunça, não tinha a menor vontade de preparar o almoço.

Foi fazendo tudo o que precisava, quase automaticamente. Ligou o radinho de pilhas na Eldorado AM. "Leitura de domingo", o nome do programa que "lê as notícias dos principais jornais do dia e revistas da semana". O rádio. Uma maneira de sentir-se menos só, embora a musiquinha de fundo lhe causasse náuseas, pois era a marca registrada desse dia da semana. Sueli detestava os domingos.

Deu um "tapa" na casa. Gostava de cozinhar. Não assim, por obrigação, mas fazia direitinho. Enquanto preparava a picanha ao forno, cozinhava as batatas para a guarnição e lavava as verduras para a enorme salada verde. Nem ela entendia porque fazia uma salada tão grande. Ninguém gostava. Nem o marido, nem os filhos. Só ela comia. Manias de Sueli.

Não prestava atenção nas notícias do rádio. Fazia seu trabalho pensando em como seria chato ir à festinha de seu afilhado e sobrinho naquela tarde. Gostava do menino, mas, pô, que saco! Festinha infantil, as mesmas pessoas e ainda iria sozinha. Marido não ia. Não ia! Ponto final!

- O que eu digo a eles?

- Diga que eu bebi demais e que estou ruim do fígado. Diga que meu time perdeu e que estou de mau humor. Diga que morri. Diga que sou anti-social e que não vou à parte alguma. Diga que eles são uns chatos, por isso fiquei em casa. Faça melhor: não vá e não precisa dizer nada.

Ele sabia que ela não faria isso. Parecia tão simples. Não ir e pronto. Mas ela iria. Ambos sabiam que ela iria.

Infeliz como estava, lógico, empanturrou-se de picanha com batatas coradas e de quebra comeu as cebolas em conserva que a mãe mandara com tanto carinho. Boas aquelas cebolinhas. Muito boas.

Hora de arrumar-se. Banho demorado, roupinha de festa, perfume preferido. Já que ia, faria direito. Presentinho na mão. Lá se foi.

No carro, animou-se. Rua! Respirou fundo.

- Nossa! Estou com bafo de cebola! Que horror! Como chegar numa festa, beijar todo mundo cheirando a cebola?

Decidiu passar em uma loja de conveniência e comprar um halls, aquelas malditas balas ardidas, que dissolvem até as papilas gustativas. Foi andando e viu que entre sua casa e o local do aniversário havia um hipermercado. Parou. Estacionou. Nem percebeu um kadett branco estacionado ao lado de seu carro. Claro, ia tantas vezes ao supermercado. Quem repara nos carros do lado?

Subiu as escadas rolantes e entrou. Foi direto ao produto procurado. Sentiu-se olhada, observada. Estranhamente observada. Um rapaz, 26, 27 anos. Bonito, forte, sarado. Há tempos não era olhada dessa forma. Ainda mais por alguém assim tão jovem. Pegou as balas e foi ao caixa, saindo rapidamente e indo para o estacionamento. Percebeu que o rapaz foi atrás. Ficou entre amedrontada e lisonjeada. Se fosse ladrão? Ora, o local estava cheio de seguranças. Se fosse paquera? Imagine, tão mocinho -"Tira isso da cabeça, Sueli".

Foi pro carro e adivinhe quem era o dono do Kadett branco? Ele, o deus. Ela percebeu porque ele desativou o alarme, aquele que acende as luzinhas e faz barulhinho. Coração disparou. Quando ia entrar no carro, o rapaz chega bem perto e sussurra: - "Quero você!" - Ela ainda olhou para os lados querendo crer que ele falasse com outra pessoa. - "Quero você!" Ela se atrapalhou toda, entrou no carro, enroscou-se no cinto de segurança. - "Sou casada" - disse timidamente. "Quero você" e escreveu algo rapidamente num papel, entregando a ela. Ela pegou e saiu voando. Foi para a festa absolutamente no ar. Pairando. Não conseguia entender. Tão jovem, tão bonito, por que ela? Já passava dos quarenta.

Quando voltou para casa, olhou-se demoradamente no espelho. - "É... nada mau. O conjunto até que é bom. O cabelo tá legal. Gosto dessa roupa. Pô, essa blusa realça meus seios. Mas como sou tonta. Se o deus do kadett branco me visse sem roupa, desistiria, riria de mim".

Tirou a roupa. Continuou a se olhar. Ficou ali muito tempo, se olhando, pensando. - "Tenho seios bonitos, sim. Vou ligar para esse menino. Cadú. Ah, vou. Não, que loucura. Não posso. É muita areia pro meu caminhãozinho. Não e não! Absolutamente não! Quer saber de uma coisa? Vou ligar, sim. O que tenho a perder? Cansei de ser certinha, cansei de ser fiel. Vou ligar. Tão jovem, tão bonito. O que ele pode querer de mim? Sexo, claro. Não. Roubar. Ele quer me roubar. Quer meus cartões de crédito, meu talão de cheques. Quem sabe vai até me matar. Será? Meu Deus! Claro que não vou ligar. Ou ligo?"

Sueli dormiu com pensamentos loucos, imperfeitos. Acordou com pensamentos indecentes. Olhou o papel. Cadú. Telefone tal. Ligou.

- Cadú? Sou a moça do supermercado de ontem, lembra?

- Quero você! quero você! quero você! Quando e onde posso te ver? Por favor, vem pra mim.

Ela arrepiou-se toda... e desligou. Picou o papelzinho, embora já tivesse decorado o número.

Definitivamente, o menino não era para o seu bico.

letteri di angeli

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