quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Tema 031 - DISFARCE

A CORTINA
Mariazinha Cremasco

Sabe aqueles dias em que você não vê graça em nada, em que tudo parece escuro, sujo e feio? Pois é, num desses dias, sentada sozinha na sala, comecei a olhar detalhadamente todos os móveis. Não vi graça nem beleza em nenhum. A cortina - coitada - acabou se tornando o alvo da minha crítica e do meu mau humor.
Fiquei olhando pra ela e pensando em sua utilidade. Como eu a vejo e para quê ela serve. Para tapar o sol naquelas horas em que ele entra impiedosamente no lugar onde estamos trabalhando, vendo tv, brincando com nossos filhos, tendo uma conversa séria com alguém (até mesmo uma entrevista de trabalho) ou namorando. É bom namorar à luz do dia, sim senhor. Mas o sol direto no rosto incomoda um pouco.

Pode ser usada também (a cortina) como um disfarce. Preste atenção: na maioria das vezes a cortina é muito maior do que a janela. Ela toma a parede inteira e a janela, coitadinha, tão pequenininha ali, escondida pela cortina. A cortina nessas horas passa a ser um disfarce. Ah, sem contar que em alguns casos o disfarce é tamanho que nem janela há. A cortina está lá. De enfeite. Ora tapando imperfeições na parede, ora para harmonizar o ambiente. Disfarce puro. Tudo isso sem contar (nos casos em que há janelas) que serve também para olhar pela brechinha quando a campainha toca e não atender aos testemunhas de Jeová, inconfundíveis.

Foi olhando para a janela de minha sala, ou melhor, foi olhando para a cortina de minha sala que fiquei pensando em tantas coisas que gostaríamos de tapar, assim como a cortina. Ou que gostaríamos de descobrir, abrindo literalmente a mesma, porém não temos coragem. Estou sendo incoerente? Tá difícil entender? Vou tentar ser clara.

Cortinas servem para tapar. Tapar imperfeições, tapar a claridade, tapar a parede, tapar o vidro sujo. Disfarces servem para tapar o que não somos ou o que gostaríamos de ser. Homens infelizes disfarçados de bons filhos, bons empregados, bons pais, bons maridos. Mulheres insatisfeitas disfarçadas de super-mulheres, super-mães, amigas, amantes. Gente que gostaria de quebrar regras, libertar-se de leis e esquemas, porém vestidos com a cortina do dia-a-dia, escondendo-se de si mesmos.

Disfarça-se tudo. Disfarça-se a insensatez, disfarça-se a infidelidade, disfarça-se o desejo de "ser", disfarça-se o preconceito, disfarça-se a vontade de amar, a vontade de enganar, a vontade de mandar tudo às favas, disfarça-se a vontade de viver, de criar asas e voar.

Tudo em nome de que? De sermos "normais". Cruzes. Coisa mais chata aquela cortina arrumadinha, engomadinha, certinha, lavada de mês em mês, sendo aberta e fechada com cuidado para durar mais, para viver bem por mais alguns anos. Viver bem? O que é viver bem? Economizar? Guardar? Prover? Prever? Previnir? Ou será que viver bem é remediar? Estamos sempre remediando. Será que isso nos basta? Será que isso é viver?

Pobre cortina. Pobre ser humano, que quer ser normal. Pobres de nós, que para viver precisamos disfarçar. Chegou a hora. Quero tirar a máscara. E para começar, vou arrancar as cortinas da sala e deixar a luz do sol entrar.

Tema 029 - NO MEIO DA ALEGRIA

AS TIAS
Mariazinha Cremasco


Júlio estava de viagem marcada. Ia fazer M.B.A em Harvard. Estávamos no carro, indo para seu "bota-fora". Estudante profissional. Era assim que meu marido classificava o sobrinho. Se eu não o conhecesse tão bem, diria que ele estava com inveja.
Júlio era de família classe-média e estava casado com uma moça muito rica, filha de banqueiro. Vivia bem, morava bem e estava sempre estudando. Um curso atrás do outro. Agora, quem diria, fora aceito em Harvard. Estudante profissional.

Íamos pela Raposo Tavares, num lindo domingo de sol e céu azul. As crianças num fogo só, excitadíssimos. Falavam pelos cotovelos e eu só recomendando que se comportassem, que não fizessem comentários. Eles eram terríveis. Tinham um vocabulário riquíssimo e um talento especial para apelidar pessoas. Para que se tenha uma idéia, um dia apelidaram um amigo da escola de "Mentira". Tanto o chamavam assim que o menino, de Mentira, passou a ser "Mente". Era conhecido apenas por "Mente". Um dia perguntei a razão desse apelido. Devia-se ao fato do menino mentir muito? Me explicaram que não. Era simplesmente porque mentira tem perna curta. Que crueldade. Mente nem era tão baixinho, mas realmente tinha pernas curtinhas. Mentira. Mente. Agora imagine a minha preocupação numa festa de família com essas pestinhas. Todas as tias com apelidos. Meu Deus!

Chegamos ao elegante condomínio na Granja Viana e eu continuava recomendando: não corram, não gritem, não mexam nas plantas, sejam normais, por favor, sejam normais, e todas aquelas coisas que as mães chatíssimas costumam dizer para os filhos.

A mãe de Júlio, irmã de meu marido, nos recebeu. Imediatamente, involuntariamente, olhei pros pestes e me lembrei do apelido dela, "Sra Voorhees". Aquela, mãe do Jason do "Sexta-Feira 13". Cá pra nós... ela é a cara da mulher de Cristal Lake. Embuti meu riso e entramos.

Logo vimos Bete, outra tia. Muito maquilada. Ela era assim mesmo. Pintava-se ao sair da cama e para qualquer ocasião. Sobrancelhas negras arqueadas, reforçadas pelo lápis preto. Isso lhe valeu o apelido de "Diaba". E aqueles meninos rindo, ah se eu pudesse tapar a boca deles! Imaginem a Sra. Voorhees e a Diaba - que dupla!

A Diaba... desculpe, a Bete, era uma mulher profundamente infeliz, reclamona, triste. Não achava graça em nada. Tinha o hábito de fazer "comentários", digamos, sobre a vida alheia. Tanto que, mal me viu, foi logo dizendo:

- Você viu a Ofélia (uma velha amiga da família)? Nossa, como ela está velha, acabada, enrugada. E olha que tem a minha idade. Estudamos juntas. Eu não estou assim, não é? Estou bem melhor que ela, não acha? Deus me livre, como ela está feia.

Antes que eu pudesse responder (sorte minha), a endiabrada Bete saiu do meu lado e foi, provavelmente, procurar outra vítima.

Me flagrei procurando a Ofélia. Lógico. Não demorei a avistá-la. Ao contrário de Bete, Ofélia era alegre, extrovertida, atirada, recém saída de um casamento. Tinha um gatil em casa. Confidenciou-me que criava quarenta gatos. Descabelada, falante, recebeu o apelido de "Ofélia, a louca".

Mal nos cumprimentamos e Ofélia me vem com essa, curta e direta:

- Menina, estou passada! Como a Bete está horrorosa, acabada. Que feia! Não se cuida, se pinta demais, fica com aparência de ser pelo menos dez anos mais velha. E olha, nós temos a mesma idade. Eu não estou como ela, não é?

- Não... - respondi, incrédula com o que estava acontecendo - claro que não...

Hilário. Com tanta gente na festa, no meio da alegria, por que eu, logo eu, fui o alvo das duas? Só rindo mesmo.

Já que fui metralhada por ambas, comecei a observar, avaliar. Se elas próprias não me tivessem chamado a atenção sobre a aparência uma da outra, acho que nem notaria o quanto estavam envelhecidas. E tínhamos todas a mesma idade!

Disfarcei um sorriso e fui pedindo licença, passando por entre os grupos animados em direção ao lavabo, convencida de que queria apenas lavar as mãos e retocar o batom. Mas ao acender a lâmpada estrategicamente instalada sobre o espelho, observei meu rosto com atenção. Pequenas marquinhas de expressão, mas a pele continuava viçosa e saudável e os cabelos bem arrumados, bonitos. Meus olhos brilharam de satisfação enquanto passava cuidadosamente o batom pelos lábios.

Eu estava muito melhor do que as duas.

Tema 020 - AMORES ILÍCITOS

A QUE FOI (SEM NUNCA TER SIDO)
Mariazinha Cremasco


Naquele dia Rosa acordou desanimada. Dificilmente sentia-se assim. Era alegre, extrovertida, cheia de vida. Nunca reclamava de nada. Quase nada a abatia.

Sentou-se. Cotovelos na mesa, apoiou a cabeça entre as mãos, respirando fundo. Seus olhos passeavam devagar pela cozinha pequena. Como era velha aquela casa. Os batentes da porta encardidos. A pia pequena, lotada de louça suja do jantar. Panelas destampadas. Como eram desorganizados e relaxados seus filhos. Com muito esforço, levantou-se da mesa, procurou uma caneca sob a montanha de pratos. Colocou água no fogo. "Talvez um café me ajude". Sentia os chinelos surrados grudando no piso vermelho. Enquanto preparava o café pensava que os filhos deviam ter ido dormir muito tarde, tamanha era a desordem. Ela não ouvira nada. Dormia como uma pedra. Era sempre assim. Ainda bem que dormia pesado. O bairro era barulhento e a janela de seu quarto dava diretamente para a rua. Imagine se não dormisse bem. Estaria perdida. Trabalhava o dia todo em casa. Para quê? Não ganhava quase nada. Vendia salgadinhos para o bar do Seu Manoel. Mas o maldito português era duro de pagar. Precisava gastar muita saliva para receber de vez em quando.

Fazia também docinhos e bolos para fora. Mas sabe como é... bairro pobre, cobrava pouco. De algumas nem cobrava. Eram vizinhas, amigas. Levavam os ingredientes, ficavam enfiadas em sua casa e Rosa fazia. Tinha talento, a mulher.

Geraldo, o marido, era caminhoneiro. Só trabalhava quando solicitado. E as viagens estavam cada vez mais espaçadas. Geraldo era devagar, tranqüilo, sossegado... Para falar a verdade, ela também era. Não se preocupava com quase nada. Deixava tudo por conta de Deus e do destino, ainda mais agora que estava descobrindo os livros de auto-ajuda e esoterismo. Pensou que os filhos não tinham puxado a ela. Detestavam ler. Ela lia muito, gabava-se de ter lido todos (ou quase todos) os livros de Sidney Sheldon, Harold Robbins, Cassandra Rios, Adelaide Carraro e até alguns de Jorge Amado. Lera até "Quarto de Despejo", de Maria Carolina de Jesus, uma catadora de papéis. Chorou muito quando leu este livro. Era uma espécie de diário. Que vida sofrida teve aquela mulher. Quando se lembrava, percebia que não podia se queixar. Não que costumasse reclamar. Hoje é que estava assim, estranha, triste.

Tomou o café, fumou um cigarro e enfrentou a cozinha. Jogou todos as sobras de comida fora (que desperdício), afinal as panelas estavam abertas, sabe-se lá que bichos poderiam ter passado por ali.

Cozinha limpa, pegou a roupa suja espalhada no banheiro, entrou no quarto onde dormiam os filhos, recolheu mais roupa suja no escuro mesmo e as enfiou de qualquer maneira na máquina. Dane-se! Quem mandou deixar tudo espalhado? Que manchem!

Nesse dia, resolveu dar um basta. Decidiu que iria trabalhar fora. Metida como estava com auto-ajuda, mentalizou com toda sua força um emprego. Abriu a porta da frente e viu o entregador da Gazeta do bairro. Pegou o jornal. Sentou-se na sala desarrumada e começou a ler os classificados. "Precisa-se de auxiliar de escritório". Rosa sorriu. Sabia que era para ela aquele emprego. Uma pequena metalúrgica no bairro. Candidatou-se e conseguiu a vaga. O salário era pequeno, mas melhor que nada. O marido não quis, esperneou, brigou e até chorou, mas ela foi mesmo assim. E gostou, se deu bem. Pelo menos o dinheirinho no final do mês era certo.

Foi lá que Rosa conheceu Vitório, um vendedor que visitava a empresa todas as quintas-feiras. Vitório não tinha muitos atrativos físicos, mas era gentil, educado, atencioso, bom papo. E Rosa foi se envolvendo. Ele a elogiava. Ela gostava daquilo e esperava com desespero pelas quintas-feiras.

Um dia, numa viagem de Geraldo, foram tomar um chopinho. Absolutamente tímidos, nada aconteceu. Apenas um breve beijinho de despedida. O suficiente para Rosa quase morrer de remorso e, ao mesmo tempo, de excitação.

Esse fato só aguçou o desejo dos dois e, algumas semanas depois não se contiveram e aconteceu o inevitável. Foram a um motel. Rosa desesperou-se no caminho. E se alguém a visse? Uma vez ultrapassada a porta de entrada, resolveu que se soltaria. Liberaria. Afinal, não era mais uma garotinha. Sabia o que queria. Precisava saber como era ter outro homem. Ofereceu-se languidamente.

Vitório, no entanto, revelou-se um perfeito imbecil. Ficou nu, só de meias pretas. Cheirava a mofo, o infeliz. E o beijo? Beijo babado, boca mole, um horror. E gabava-se, achando-se o máximo - segurança essa talvez decorrente do fato de possuir um membro de proporções respeitáveis. Isso sem contar que o hálito do homem indicava que o almoço havia sido regado a muito azeite e alho.

Rosa sentiu um zumbido nos ouvidos. O que esperava há tanto acabou se transformando num pesadelo, uma tortura. Simulou uma crise de arrependimento e exigiu que saíssem dali. Vitório, assustado, obedeceu. Vestiu-se desajeitadamente e saíram. Foram do motel ao ponto de ônibus onde ela a deixaria em silêncio. Rosa saltou do carro e bateu a porta sem uma palavra de despedida. Seu breve caso extra-conjugal estava acabado antes mesmo de ter se consumado.

Ela continuou trabalhando na metalúrgica por mais dois anos. Vitório continuava a ir todas as quintas-feiras ao escritório, mas quase não se olhavam.

Em casa, as coisas seguiam como sempre. Seu marido caminhoneiro, o bronco, que não lia e não se informava, que comia com a colher e falava errado, era maravilhoso. Fazia amor divinamente, do jeito que Rosa gostava. Puxava os cabelos, jogava na parede, chamava de lagartixa. Ele era o seu amor, o seu lícito amor.

E como era gostoso o seu beijo.

Tema 019 - FAZ DE CONTA

SIMPLICIDADE. SIMPLICIDADE?
Mariazinha Cremasco


"Acredito que as coisas simples da vida são as mais importantes". Essa frase foi escrita por uma amiga em um livro meu, como dedicatória. Fiquei pensando no quanto é simples ou complicado ser feliz.

Fui uma criança pobre. Não fazíamos de conta que éramos felizes. Éramos felizes de fato. Estávamos sempre juntos. Dividíamos problemas, alegrias e sonhos. Nossas brincadeiras eram deliciosas. Meu pai nos levava a passeios incríveis, onde tudo o que gastava era a criatividade. Íamos jogar pedra no rio. Já viu coisa mais inocente? Na verdade, o rio não era rio. Era um córrego. Córrego dos Meninos, no ABC. Outra coisa que costumávamos fazer: Contar carros e ônibus na Via Anchieta. Meu pai fazia a contabilidade. Ganhava quem acertasse mais o número de carros e marcas que passavam em xis minutos. O que ganhava o vencedor? Apenas a alegria de ter ganho. Gostosas gargalhadas. Simples, não?

Vejo hoje, que as pessoas precisam de mais, muito mais para serem felizes. Que pena. Quando tive meus filhos, eu tinha a noção de que a vida não era cor-de-rosa como a gente via nas revistas. Pais lindos e sorridentes. Mães arrumadíssimas, cheirosas, sem um fio de cabelo fora do lugar. Bebês igualmente cor-de-rosa e sorridentes. Nunca brinquei de faz-de-conta-que-comigo-vai-ser-assim. Sabia que bebês choram à noite, fazem cocô, vomitam, ficam doentes. Pô, mas não sabia que era tanto assim. Quantas noites, quantas preocupações. Mas... e a felicidade? Ela estava ali. Nas pequenas coisas. Nas descobertas. Em cada progresso, em cada detalhe, em cada coisa nova que faziam ou aprendiam. Na verdade, como diz essa minha amiga, ali. Ali estava ela. Nas coisas mais simples.

Hoje tento passar isso aos "pequenos". Não acredito que com sucesso. Está cada dia mais difícil sonhar, ver e contentar-se com pequenas coisas, pequenos gestos.

Convivo com pessoas, sendo eu mesma uma delas, que vivem rodeadas por vídeo-cassetes, DVDs, computadores, carros, TVs a cabo, aparelhos de som, disc-man, viagens. As pessoas precisam de cada vez mais. E ainda assim não sorriem. O que será que falta? Não, não sou a favor de me enfiar no mato e ficar olhando estrelas, sem luz nem água. Adoro todo o tipo de conforto e de coisas modernas que facilitam a vida. Mas sobretudo, gosto de gente. De que me vale assistir a um bom filme, sem um amigo, ou filho, para comentar, rir ou chorar juntos? As pessoas estão cada vez mais sós... mais voltadas para si mesmas.

Simplicidade. Talvez seja essa a palavra. Talvez seja isso que esteja faltando. Olhar, perceber, sentir, sonhar, dividir. Entrar talvez no mundo do faz-de-conta, alguns minutos por dia.

É, a cada dia mais me convenço de que a felicidade está nas coisas mais simples da vida, não é mesmo, Sônia?

Tema 019 - FAZ DE CONTA

MARIA, MARIA
Mariazinha Cremasco


- "Acorda, menina! Sai desse mundo de faz de conta".

Era minha avó. Percebia que eu estava "viajando" e me chamava de volta à realidade.

- "Me deixa, vó!"

Nós nos dávamos muito bem. Nos amávamos. Ela era muito moderna para a época. Eu adorava isso nela. Achava lindo que eu usasse mini-saia. Meu pai implicava, e ela defendia.

- "Deixa a menina. O que é bonito é para ser mostrado. Essa menina tinha que ser miss."

Claro que ela me via com olhos de avó. Os olhos do amor. Aliás, lindos olhos verdes, que só minha prima mais velha herdou. Para ela, eu só tinha qualidades...para mim, ela era perfeita. Eu também a olhava com os olhos do amor.

Saíamos muito juntas. falávamos sobre tudo. Namorados, homens, política, carros, crimes, sexo. Tudo. Até beijo de "selinho" nos dávamos.

Vaidosíssima, era incapaz de atender a porta sem antes tirar o avental, ajeitar os cabelos e dar pequenos beliscões nas bochechas. Eu achava tanta graça naquele gesto. Era tão lindo. Eu era capaz de ficar minutos olhando para ela. Tudo o que eu mais queria era ser parecida com ela.

- "Acorda, menina! Sai desse mundo de faz de conta".

O tempo passou, casei, tive meus filhos.Nunca ficamos longe uma da outra. Todas as quartas-feiras ela passava o dia comigo. Acompanhava a rotina da casa. Ia comigo levar os meninos à escola, à natação, fazíamos supermercado. Os meninos a amavam. A Bisa. A Bisa bonita.

Nesses dias, ela me dava pequenos "toques" sobre arrumar-me mais, preocupar-me menos, sonhar mais, viver mais, afinal, dizia, tudo está nos eixos. - "Você tem se esquecido de si mesma". Hoje, compreendo. Na verdade ela queria dizer: - Sonhe, volte a sonhar. Sonhar é bom.

Minha avó morreu em 1986. Meus filhos se lembram bem dela. Tivereram esse privilégio. Alguns meses antes de sua morte, eu ia visitá-la, levando os meninos. Ela me olhava longamente. Hoje sei que a sonhadora era ela. Nessas horas, eu é quem dizia: -"Acorda, vó! Sai desse mundo de faz de conta."

Hoje meus filhos têm, como eu tive, uma avó maravilhosa. Eu? Faço de conta que sou feliz. Talvez seja mesmo feliz, na maior parte do tempo. Reaprendi a sonhar. Sonhar é bom.

Faz de conta, vó Maria, que a cada vez que eu sentir saudade e pensar em você, os anjos soprem no seu ouvido a nossa música:

Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria.
Mas é preciso ter manha,
é preciso ter graça, é preciso ter sonho, sempre.
Quem traz na pele essa marca,
possui a estranha mania de ter fé na vida

Tema 018 - PENSAMENTOS IMPERFEITOS

O DEUS DO KADETT BRANCO
Mariazinha Cremasco


Sueli estava azeda naquela manhã de domingo. Dormira mal, a casa estava uma bagunça, não tinha a menor vontade de preparar o almoço.

Foi fazendo tudo o que precisava, quase automaticamente. Ligou o radinho de pilhas na Eldorado AM. "Leitura de domingo", o nome do programa que "lê as notícias dos principais jornais do dia e revistas da semana". O rádio. Uma maneira de sentir-se menos só, embora a musiquinha de fundo lhe causasse náuseas, pois era a marca registrada desse dia da semana. Sueli detestava os domingos.

Deu um "tapa" na casa. Gostava de cozinhar. Não assim, por obrigação, mas fazia direitinho. Enquanto preparava a picanha ao forno, cozinhava as batatas para a guarnição e lavava as verduras para a enorme salada verde. Nem ela entendia porque fazia uma salada tão grande. Ninguém gostava. Nem o marido, nem os filhos. Só ela comia. Manias de Sueli.

Não prestava atenção nas notícias do rádio. Fazia seu trabalho pensando em como seria chato ir à festinha de seu afilhado e sobrinho naquela tarde. Gostava do menino, mas, pô, que saco! Festinha infantil, as mesmas pessoas e ainda iria sozinha. Marido não ia. Não ia! Ponto final!

- O que eu digo a eles?

- Diga que eu bebi demais e que estou ruim do fígado. Diga que meu time perdeu e que estou de mau humor. Diga que morri. Diga que sou anti-social e que não vou à parte alguma. Diga que eles são uns chatos, por isso fiquei em casa. Faça melhor: não vá e não precisa dizer nada.

Ele sabia que ela não faria isso. Parecia tão simples. Não ir e pronto. Mas ela iria. Ambos sabiam que ela iria.

Infeliz como estava, lógico, empanturrou-se de picanha com batatas coradas e de quebra comeu as cebolas em conserva que a mãe mandara com tanto carinho. Boas aquelas cebolinhas. Muito boas.

Hora de arrumar-se. Banho demorado, roupinha de festa, perfume preferido. Já que ia, faria direito. Presentinho na mão. Lá se foi.

No carro, animou-se. Rua! Respirou fundo.

- Nossa! Estou com bafo de cebola! Que horror! Como chegar numa festa, beijar todo mundo cheirando a cebola?

Decidiu passar em uma loja de conveniência e comprar um halls, aquelas malditas balas ardidas, que dissolvem até as papilas gustativas. Foi andando e viu que entre sua casa e o local do aniversário havia um hipermercado. Parou. Estacionou. Nem percebeu um kadett branco estacionado ao lado de seu carro. Claro, ia tantas vezes ao supermercado. Quem repara nos carros do lado?

Subiu as escadas rolantes e entrou. Foi direto ao produto procurado. Sentiu-se olhada, observada. Estranhamente observada. Um rapaz, 26, 27 anos. Bonito, forte, sarado. Há tempos não era olhada dessa forma. Ainda mais por alguém assim tão jovem. Pegou as balas e foi ao caixa, saindo rapidamente e indo para o estacionamento. Percebeu que o rapaz foi atrás. Ficou entre amedrontada e lisonjeada. Se fosse ladrão? Ora, o local estava cheio de seguranças. Se fosse paquera? Imagine, tão mocinho -"Tira isso da cabeça, Sueli".

Foi pro carro e adivinhe quem era o dono do Kadett branco? Ele, o deus. Ela percebeu porque ele desativou o alarme, aquele que acende as luzinhas e faz barulhinho. Coração disparou. Quando ia entrar no carro, o rapaz chega bem perto e sussurra: - "Quero você!" - Ela ainda olhou para os lados querendo crer que ele falasse com outra pessoa. - "Quero você!" Ela se atrapalhou toda, entrou no carro, enroscou-se no cinto de segurança. - "Sou casada" - disse timidamente. "Quero você" e escreveu algo rapidamente num papel, entregando a ela. Ela pegou e saiu voando. Foi para a festa absolutamente no ar. Pairando. Não conseguia entender. Tão jovem, tão bonito, por que ela? Já passava dos quarenta.

Quando voltou para casa, olhou-se demoradamente no espelho. - "É... nada mau. O conjunto até que é bom. O cabelo tá legal. Gosto dessa roupa. Pô, essa blusa realça meus seios. Mas como sou tonta. Se o deus do kadett branco me visse sem roupa, desistiria, riria de mim".

Tirou a roupa. Continuou a se olhar. Ficou ali muito tempo, se olhando, pensando. - "Tenho seios bonitos, sim. Vou ligar para esse menino. Cadú. Ah, vou. Não, que loucura. Não posso. É muita areia pro meu caminhãozinho. Não e não! Absolutamente não! Quer saber de uma coisa? Vou ligar, sim. O que tenho a perder? Cansei de ser certinha, cansei de ser fiel. Vou ligar. Tão jovem, tão bonito. O que ele pode querer de mim? Sexo, claro. Não. Roubar. Ele quer me roubar. Quer meus cartões de crédito, meu talão de cheques. Quem sabe vai até me matar. Será? Meu Deus! Claro que não vou ligar. Ou ligo?"

Sueli dormiu com pensamentos loucos, imperfeitos. Acordou com pensamentos indecentes. Olhou o papel. Cadú. Telefone tal. Ligou.

- Cadú? Sou a moça do supermercado de ontem, lembra?

- Quero você! quero você! quero você! Quando e onde posso te ver? Por favor, vem pra mim.

Ela arrepiou-se toda... e desligou. Picou o papelzinho, embora já tivesse decorado o número.

Definitivamente, o menino não era para o seu bico.

letteri di angeli

está no ar!