quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Tema 018 - PENSAMENTOS IMPERFEITOS

O DEUS DO KADETT BRANCO
Mariazinha Cremasco


Sueli estava azeda naquela manhã de domingo. Dormira mal, a casa estava uma bagunça, não tinha a menor vontade de preparar o almoço.

Foi fazendo tudo o que precisava, quase automaticamente. Ligou o radinho de pilhas na Eldorado AM. "Leitura de domingo", o nome do programa que "lê as notícias dos principais jornais do dia e revistas da semana". O rádio. Uma maneira de sentir-se menos só, embora a musiquinha de fundo lhe causasse náuseas, pois era a marca registrada desse dia da semana. Sueli detestava os domingos.

Deu um "tapa" na casa. Gostava de cozinhar. Não assim, por obrigação, mas fazia direitinho. Enquanto preparava a picanha ao forno, cozinhava as batatas para a guarnição e lavava as verduras para a enorme salada verde. Nem ela entendia porque fazia uma salada tão grande. Ninguém gostava. Nem o marido, nem os filhos. Só ela comia. Manias de Sueli.

Não prestava atenção nas notícias do rádio. Fazia seu trabalho pensando em como seria chato ir à festinha de seu afilhado e sobrinho naquela tarde. Gostava do menino, mas, pô, que saco! Festinha infantil, as mesmas pessoas e ainda iria sozinha. Marido não ia. Não ia! Ponto final!

- O que eu digo a eles?

- Diga que eu bebi demais e que estou ruim do fígado. Diga que meu time perdeu e que estou de mau humor. Diga que morri. Diga que sou anti-social e que não vou à parte alguma. Diga que eles são uns chatos, por isso fiquei em casa. Faça melhor: não vá e não precisa dizer nada.

Ele sabia que ela não faria isso. Parecia tão simples. Não ir e pronto. Mas ela iria. Ambos sabiam que ela iria.

Infeliz como estava, lógico, empanturrou-se de picanha com batatas coradas e de quebra comeu as cebolas em conserva que a mãe mandara com tanto carinho. Boas aquelas cebolinhas. Muito boas.

Hora de arrumar-se. Banho demorado, roupinha de festa, perfume preferido. Já que ia, faria direito. Presentinho na mão. Lá se foi.

No carro, animou-se. Rua! Respirou fundo.

- Nossa! Estou com bafo de cebola! Que horror! Como chegar numa festa, beijar todo mundo cheirando a cebola?

Decidiu passar em uma loja de conveniência e comprar um halls, aquelas malditas balas ardidas, que dissolvem até as papilas gustativas. Foi andando e viu que entre sua casa e o local do aniversário havia um hipermercado. Parou. Estacionou. Nem percebeu um kadett branco estacionado ao lado de seu carro. Claro, ia tantas vezes ao supermercado. Quem repara nos carros do lado?

Subiu as escadas rolantes e entrou. Foi direto ao produto procurado. Sentiu-se olhada, observada. Estranhamente observada. Um rapaz, 26, 27 anos. Bonito, forte, sarado. Há tempos não era olhada dessa forma. Ainda mais por alguém assim tão jovem. Pegou as balas e foi ao caixa, saindo rapidamente e indo para o estacionamento. Percebeu que o rapaz foi atrás. Ficou entre amedrontada e lisonjeada. Se fosse ladrão? Ora, o local estava cheio de seguranças. Se fosse paquera? Imagine, tão mocinho -"Tira isso da cabeça, Sueli".

Foi pro carro e adivinhe quem era o dono do Kadett branco? Ele, o deus. Ela percebeu porque ele desativou o alarme, aquele que acende as luzinhas e faz barulhinho. Coração disparou. Quando ia entrar no carro, o rapaz chega bem perto e sussurra: - "Quero você!" - Ela ainda olhou para os lados querendo crer que ele falasse com outra pessoa. - "Quero você!" Ela se atrapalhou toda, entrou no carro, enroscou-se no cinto de segurança. - "Sou casada" - disse timidamente. "Quero você" e escreveu algo rapidamente num papel, entregando a ela. Ela pegou e saiu voando. Foi para a festa absolutamente no ar. Pairando. Não conseguia entender. Tão jovem, tão bonito, por que ela? Já passava dos quarenta.

Quando voltou para casa, olhou-se demoradamente no espelho. - "É... nada mau. O conjunto até que é bom. O cabelo tá legal. Gosto dessa roupa. Pô, essa blusa realça meus seios. Mas como sou tonta. Se o deus do kadett branco me visse sem roupa, desistiria, riria de mim".

Tirou a roupa. Continuou a se olhar. Ficou ali muito tempo, se olhando, pensando. - "Tenho seios bonitos, sim. Vou ligar para esse menino. Cadú. Ah, vou. Não, que loucura. Não posso. É muita areia pro meu caminhãozinho. Não e não! Absolutamente não! Quer saber de uma coisa? Vou ligar, sim. O que tenho a perder? Cansei de ser certinha, cansei de ser fiel. Vou ligar. Tão jovem, tão bonito. O que ele pode querer de mim? Sexo, claro. Não. Roubar. Ele quer me roubar. Quer meus cartões de crédito, meu talão de cheques. Quem sabe vai até me matar. Será? Meu Deus! Claro que não vou ligar. Ou ligo?"

Sueli dormiu com pensamentos loucos, imperfeitos. Acordou com pensamentos indecentes. Olhou o papel. Cadú. Telefone tal. Ligou.

- Cadú? Sou a moça do supermercado de ontem, lembra?

- Quero você! quero você! quero você! Quando e onde posso te ver? Por favor, vem pra mim.

Ela arrepiou-se toda... e desligou. Picou o papelzinho, embora já tivesse decorado o número.

Definitivamente, o menino não era para o seu bico.

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