terça-feira, 28 de dezembro de 2010

TEMA 34 - LABIRINTO

PEG E (NÃO) PAGUE
Mariazinha Cremasco


Afanásio era um homem lá dos seus cinqüenta e poucos anos. Casado com a mesma mulher há quase trinta anos, competente no trabalho, corretíssimo e muito, muito chato. Sua chatice não tinha razão de ser. Era chato e pronto. Intolerante, rabugento, implicante, sem paciência para nada. Tinha dificuldade em demonstrar sentimentos, o "seu" Afanásio. Às vezes parecia um tirano, outras vezes, um pobre coitado.

As pessoas do seu convívio tentavam enaltecer suas qualidades, que diga-se de passagem, não eram poucas. Homem honesto, fiel, incorruptível. Só que exagerava no direito de ser chato. Chegava a ser insuportável. Criticava tudo e todos, senhor absoluto da verdade - e que ninguém ousasse desafiá-lo. Tinha preconceitos absurdos contra advogados, judeus e japoneses. Não gostava de mineiros, pobres, pretos e homossexuais. Detestava gente do ABC e pessoas que estacionam de marcha à ré nos supermercados. Tinha pavor de quem fala ou escreve errado e de funcionários públicos. Achava que quem trabalha muito é burro e abominava psicólogos. Detestava médicos também, embora precisasse deles, como qualquer outra pessoa. Odiava velhos ("por que não morrem logo, ficam aí fazendo hora extra!") e crianças ("são todas mal educadas e estão sendo treinadas para ser prostitutas ou trombadinhas"). Um dia, assistindo à televisão rimos muito quando vimos uma menininha dançando a boquinha da garrafa. O comentário do Afanásio: "essa está colocando a xoxota a juros".

Pertencia à classe média alta. Tinha poupança, aplicações, dinheiro guardado. Nada lhe faltava. Homem previdente e econômico: econômico no sexo, econômico no amor, econômico nas finanças, econômico em tudo.

Um belo dia, decidiu parar de fumar. E engordou. E ficou incomodado. E teve medo. Não conseguia parar de comer doces. A única saída que encontrou foi comprar balinhas diet, para suprir sua necessidade de açúcar. Foi ao supermercado e se indignou com o preço dos produtos diet, caríssimos. Ficou indeciso por momentos e, quando se deu conta, já tinha pego uma latinha de balas, aberto a embalagem, enfiado uma na boca e guardado a caixinha metálica no bolso da camisa.

Mal sabia que à partir deste dia entraria num labirinto. Labirinto, sim: sem saída. O final do caminho. Passou a ir todos os dias a supermercados, vários, um após o outro. E furtava balinhas e chicletes "no sugar". Fez daquilo sua diversão. De balinhas e chicletes passou a pilhas e baterias. A coisa foi crescendo e, logo, já vinha para casa com aparelhos de barba, pregos, parafusos, escovas de dente, revolveres de mangueira de jardim. Ia ficando cada dia mais atrevido, cada vez mais sofisticado nos seus furtos. Até que passou a freqüentar a seção de produtos alimentícios. Aí ninguém mais o segurava. Roubava vidrinhos e vidrinhos de condimentos. Desde os mais simples, como canela em pó e pimenta do reino, até os mais sofisticados, como curry e endro. Um dia chegou ao ponto máximo da cara de pau. Levou para casa, escondidos nos bolsos, vidrinhos de alcaparras e de aliche importados.

"Seu" Afanásio, o incorrupto, o homem correto, que calculava centavos, o homem que não lesava ninguém e que não admitia ser lesado, estava absolutamente viciado em pequenas contravenções, para pavor de sua mulher, que me contou essa história com lágrimas nos olhos. Achei muito triste, embora tenha dado minhas gargalhadas lá no íntimo. Como vizinha desse homem tão chato, que gritava com meus filhos, que não admitia que meu carro ficasse um milímetro na "sua" calçada, que reclamava que as folhas da "minha" árvore sujavam a rua, que não devolvia bolas nem pipas que caíssem em seu quintal, me senti um pouquinho vingada. Afinal, em todo labirinto há um minotauro. Para Afanásio, o minotauro é o Zé da segurança, que um dia vai fazê-lo esvaziar os bolsos na mesa da salinha dos fundos.

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